Sobre “Encantado”

“Não se faz festa porque a vida é boa, mas pela razão inversa.” Luiz Antônio Simas (2019)

“Não à toa, aqueles que invocam as palavras de força no cair da noite ritualizam a vida e seus ciclos com cantos, dança, plantio, colheita e festa para permanecer criança, virar bicho, vibrar folha e desaguar na maré dos tempos.” Luis Rufino (2021)

Em março de 2020, O Centro de Artes da Maré, também sede da Lia Rodrigues Companhia de Danças, se tornou o coração das ações coordenadas pela Redes da Maré e parceiros que buscaram garantir assistência básica de saúde, prevenção, cuidados e segurança alimentar para os moradores da Maré. Quando “Encantado” iniciou seus ensaios, em abril de 2021, sob o mesmo teto, e no mesmo momento em que a campanha “A Maré diz não ao Coronavirus” se desenvolvia, dois corações passaram a pulsar juntos naquele local, negociando e ajustando seus ritmos. Coincidentemente, naqueles mesmos meses, o teto do espaço era transformado com a substituição de suas telhas, que passaram a gerar energia solar.

Várias forças atravessaram a criação de “Encantado”. Como ruído de fundo e constante, esteve a crise sanitária provocada pelo SARS-CoV-2, com suas imposições para afirmar a vida e garantir a saúde pensada de modo incontornável como coletiva.

Os protocolos de distanciamento e os testes regulares se juntavam ao uso de máscaras que escondiam os rostos dos bailarinos que haviam se encontrado como equipe pela primeira vez para a criação dessa peça. O que se experimentava corporalmente durante os ensaios não chegava às expressões faciais, como se o uso de máscaras por tantos meses tivesse desintegrado o rosto de suas danças.

Havia o desejo de experimentar os corpos que dançam como viventes, apoiados em cosmogonias afro-indígenas que vibram e resistem ao projeto de morte do “Brasil que deu certo”. Como Luiz Antônio Simas não se cansa de lembrar, o Brasil Institucional cumpre seu “projeto bem sucedido de horror”, em tensão constante com o que o autor entende como a brasilidade, único antídoto para esse Brasil. Brasilidade que “vai sendo construída, numa dimensão transgressora, nas brechas, nas frestas e nas rachaduras do Brasil oficial”.

Houve ainda a ocupação de Brasília por grupos indígenas para garantir seus direitos irrevogáveis à terra, em agosto de 2021, marcando suas presenças com dança, canto e luta, acontecimento que trouxe as vozes que irrigam esse trabalho. E há sempre as leituras, dentre estas a do romance Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, narrado também por um Encantado.

É ainda Simas que lembra que “Encantado é aquele que dribla a morte e se coloca em disponibilidade para se alterar — esse é o fenômeno da encantaria. Para ele, não existe a dicotomia entre a vida e a morte, o que basicamente existe é a vida e a não vida, o encanto e o desencanto”.

Foi assim que, a partir de solos, separações, distâncias, limites e negociações, a criação — com onze intérpretes-criadores e cento e quarenta cobertores viventes — se impôs pelas frestas, ganhando espaço, corpo e rosto. Dança que secreta, povoa e transforma o território que só em cena se inaugura. Por contágio, “Encantado” se transformou também em festa.


Silvia Soter
Dramaturgista da Lia Rodrigues Companhia de Danças e Professora da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro