Sob a mira do Capital e sua ícias, meu corpo preto gingado é uma fronteira. Na fronteira, a lei é a da exceção. Contra um corpo-fronteira, no Jacarezinho, na Maré, no shopping, no Capão ou na Paulista: Exceptis. Porque um corpo-fronteira é ainda um corpo que se move, e fronteiras móveis redesenham a todo instante o mapa da cidade. É preciso muita violência e medo para que um mapa se mantenha em sua fixidez. Todavia, trata-se de converter o limite em limiar: aqui, onde, ao ouvirmos “tem um corpo ali”, imediatamente imaginamos o cadáver, viver é fazer corpo.

No palco de Fúria, corpos-fronteiras se movem no trabalho ritual desse fazer corpo. Face à violência impossível de dizer, à violência pura do real, num país em que o real é moeda, trata-se ainda de verificar o valor de uso do impossível. Há, na cena de Fúria, algo que, num primeiro momento, aparece-nos como uma profusão de imagens. Sim, as imagens estão lá, mas desfazendo-se em corpos, desmanchando-se em sua solidez de fantasma de lençol: há sempre um corpo que subsiste ao terror, à assombração. Em meio à devastação, do melodrama vemos apenas vestígios.

Quando Peter Sloterdijk constata que “a primeira palavra da Europa” é “ira”, como cantou Homero na Ilíada, ele nos traz à pergunta: o que esperar de uma civilização que nasce pedindo licença para cantar a Guerra? Aimé Césaire não teve dúvida: “A Europa é indefensável”. Na tragédia, o coro, organizado no presente da cidade, dançava diante do passado e do sangue tomando a cena. A cena era uma imagem do passado; o coro, a consciência difícil de uma dor não esquecida desde o parto do presente. Na origem da tragédia, as Fúrias, portadoras do ressentimento e suas revoltas, resistiam à emergência democrática. Já aqui, Fúria é outra coisa. Em cena, compreendemos que o coro, longe de figurar a unidade mórbida da cidade, é pulsão de vida, sinal corpóreo precário e provisório, em constante reconfiguração, que subsiste aos ciclos que se cancelam, fazendo ver que uma sociedade em que a tragédia já não é mais possível, e ainda assim sofre, é uma sociedade que vive no presente a sua catástrofe, porque o passado passou e não passou; e as promessas de inclusão acenam para um mundo que não existe mais. “E”: essa convivência terrível de fusos históricos é o que emerge das espirais que se acumulam no palco de Fúria. Essa fúria é transmutação do ressentimento, porque nela se intui que Revolução não é vingança. Mas também não é esquecimento. O que acontece quando o que subsiste se levanta?

O palco pode ser uma Medusa cínica, mas também uma medusa estrábica. Neste caso, há toda uma estratégia em saber para quem ele olha e quem o vê. Nós que estamos diante das piscadelas dessa Medusa, ora somos cúmplices, ora a plateia confrontada, ora mobilizada, ora paralisada, numa demonstração conflagrada de que alianças não são simples nem evidentes. Há quem tema o fim deste mundo. Em Fúria, o fim do mundo é um grande ensaio; e suas ruínas, seus restos, emergem de uma arqueologia afetiva. Na
divergência dos fusos, o descanso final dos corpos quer ser o adiamento do cadáver, porque como nos avisou Fanon: “A explosão não ocorrerá hoje. É muito cedo... ou tarde demais.” Trata-se de esperar um outro dia, para o qual não sabemos se será possível usar o nome “amanhã”.


José Fernando Peixoto de Azevedo
Dramaturgo e encenador, professor na Escola de Arte Dramática e no
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo.